Exemplar da edição brasileira de A MÁSCARA DE DIMÍTRIOS, livro originalmente publicado no Reino Unido, em 1939, com o título THE MASK OF DIMITRIOS.
Charles Latimer, cidadão inglês escritor de romances policiais, ex-professor universitário, tem a rara oportunidade de ver, em um necrotério turco, o cadáver de um supostamente perigoso criminoso internacional — do qual a princípio pouco se sabe — recém encontrado morto nas águas do Bósforo. A inicial curiosidade de Latimer se transforma em uma verdadeira obsessão, a ponto de ele decidir aventurar-se a descobrir toda a história por trás desse criminoso.
É notável como o autor utiliza a caótica conjuntura política europeia do entre-guerras, e sobretudo a sempre delicada situação nos Bálcãs, para contextualizar a ação do romance. Remarque-se, a propósito, que o livro foi publicado às vésperas da deflagração da 2ª Guerra Mundial.
Muito interessante, ou no mínimo curiosa, por tão pertinente à atualidade de um certo país tropical, é a observação do chefe de polícia turco ao explicar a Latimer que tipo de criminoso era Dimítrios:
(…) Homens deste calibre nunca arriscam a pele numa empresa desse gênero. São os profissionais, os entrepreneurs, os elos de ligação entre os homens de negócios e os políticos, que ambicionam os fins, mas receiam os meios, e suas armas são os fanáticos, os idealistas, que estão sempre prontos a morrer por suas convicções. A coisa mais importante a saber na investigação de um atentado político não é quem disparou o tiro, mas sim quem pagou a bala. Os únicos homens que estão ao corrente de todos os fatos são os rufiões da laia deste Dimítrios. Estão sempre dispostos a denunciar seus colegas ou associados desde que, por este meio, consigam evitar os desconfortos do cárcere. Dimítrios não é diferente de muitos outros. (…) (págs. 25-26)
O texto acima, não custa relembrar, é de 1939.
Infelizmente, este que é um dos mais clássicos romances de espionagem de todos os tempos já está desde a década de 1980 fora de catálogo aqui no Brasil. Sem dúvida merece uma nova edição (com tradução revisada).
Civis italianos celebram com soldados brasileiros a libertação da cidade de Massarosa, na Toscana, 1944 – fotógrafo desconhecido
MINA R: NARRATIVA
Ouro Sobre Azul Brasil, 2013
um romance de Roberto de Mello e Souza
* * *
Já desde os primitivos planos de levar a cabo a produção deste espaço, pensava eu em inaugurar um futuro rol de observações literárias com um livro brasileiro. Calhou de o escolhido ser este MINA R: NARRATIVA, lido em meados de 2018.
Lembrei-me há pouco de como vim a saber desta bela obra. Foi por meio de um texto de Ana Lima Cecilio intitulado Breve guia de livros desconhecidos, publicado outrora (creio que em 2015) na São Paulo Review. Trata-se de uma compilação de títulos a ela indicados por alguns de seus amigos escritores. É uma lista no mínimo curiosa, senão preciosa. MINA R é a indicação de Rodrigo Lacerda, que acerca do livro rematou: “Sem exagero, é uma espécie de ‘Guimarães Rosa vai à II Guerra Mundial’.”
Imediatamente após a leitura desse Breve guia de livros desconhecidos, comecei a tentar encontrar exemplares de alguns dos livros nele indicados. Acabei comprando um exemplar usado, em ótimo estado, da terceira edição de MINA R: NARRATIVA, publicada em 2013 pela Editora Ouro Sobre Azul. É a mais recente edição do romance, publicado originalmente pela Editora Duas Cidades no ano de 1973.
Mas é claro que, uma vez recebido, o livro não escapou à regra: descansou um bom tempo na estante até que eu finalmente o pegasse para ler. E somente agora, quando por acaso retornei à fonte de onde tirei a indicação, percebi que a sucinta definição de Rodrigo Lacerda acima transcrita, da qual eu já não me recordava, serve bem para demonstrar o que MINA R traz para além de seu argumento central.
Com efeito, uma sinopse possível seria esta: um soldado brasileiro, membro de um esquadrão encarregado de desarmar minas explosivas de campos e estradas, limpando, assim, o terreno para o avanço dos tanques americanos no front sul-europeu da 2ª Guerra Mundial, conta sua batalha pessoal contra a famigerada mina R alemã, de desarme considerado impossível. Esta síntese, entretanto, embora correta, não dá conta da complexidade dos temas trabalhados ao longo do romance.
ROMANCE OU MEMÓRIAS?
MINA R baseia-se na experiência pessoal de Roberto de Mello e Souza na Itália. Pode, desse modo, ser considerado um romance autobiográfico.
Em uma entrevista concedida pelo autor por ocasião do lançamento da segunda edição da obra, ele confirmou que o livro consiste, de fato, em suas memórias de guerra, e revelou que o escreveu em apenas três dias, durante o carnaval de 1972, mais de 25 anos depois, portanto, do tempo da ação do romance: breves quinze minutos do dia 20 de abril de 1945, conforme bem se recordava.
O soldado, futuro autor… – fotógrafo desconhecido
Apenas a título de curiosidade, vale apontar que Roberto de Mello e Souza era irmão do professor e crítico literário Antonio Candido. A capa desta edição de MINA R mostra o então cabo Roberto posando em frente ao Coliseu, em Roma, durante os anos de guerra.
IMERSÃO NA GUERRA
Roberto de Mello e Souza transmite com grande efetividade sua “familiaridade” – conhecimento de causa seria um termo mais apropriado – com a guerra.
Cenas e episódios clássicos de combate são entremeados com as impressões e sentimentos pessoais que um soldado experimenta durante uma guerra, resultando em soberbos relatos de medo e coragem, lembranças e saudades, momentos de camaradagem e pequenos prazeres, interações com os locais e adversidades climáticas.
Destaca-se, ao longo do livro, o esforço do autor em registrar a batalha psicológica interna dos combatentes em relação ao aspecto humanitário da guerra. São várias as passagens em que o protagonista reflete sobre sua especialidade, tentando interiorizar a ideia de que, ao desarmar minas, estaria salvando vidas ao invés de tirá-las, e buscando manter, por meio desse pensamento, alguma serenidade, ou pelo menos algum resquício de humanidade, em meio ao cotidiano bestial do campo de batalha.
…e a infame mina R (R de Riegelmine) – foto de Yuri Pasholok
Mas, acima de tudo, os dois traços que alçam este romance a um patamar elevado entre os livros de guerra são os belíssimos quadros apresentados e o estilo e linguagem empregados por Mello e Souza.
O linguajar prosaico da soldadesca aparece não apenas nos diálogos, mas também nas passagens puramente narrativas, conferindo legitimidade ao relato e fazendo com que o leitor se sinta constantemente ao lado do narrador no próprio teatro de guerra.
Considere-se, por exemplo, a passagem reproduzida logo abaixo, escolhida para inaugurar nossa tag “QUE CENA!”, tributária da saudosa homônima seção do site Todo Prosa, do prezado Sérgio Rodrigues.
No excerto — todo um longo parágrafo, às páginas 84-85 — o narrador descreve de tal maneira as reações de um colega fatalmente ferido que mesmo um leitor de imaginação não tão fértil seria capaz de visualizar mentalmente a vida daquele soldado se esvaindo. O trecho pode parecer um pouco confuso, mas isso se deve ao estilo próprio do autor, notadamente à sua peculiar pontuação, algo a que se habitua no decorrer da leitura.
QUE CENA! UM COLEGA BALEADO DESMORONA
E bala esfiapando por ali afora e às vezes fazia um e esse um só tinha que ir dando baixa. No chão. E quando um caía você gelava. E levava um baque de sangue e susto por dentro que estacava de repente a respiração. Olhava. E ele ia caindo e olhando para a gente. E esse olhar era terrível. Demais. Olhava com uma expressão assim de quem não está entendendo, de quem acha que foi só um engano: “será que me fizeram mesmo? não deve ser” como se fosse a coisa mais impossível do mundo, essas coisas que só têm direito de acontecer para os outros, para mim não, eu tenho mãe e namorada, eu tinha que voltar para contar isso tudo aqui se não o que que adiantou ter vindo e se eles me acertaram eu nunca vou nem poder conversar com mais ninguém quanto mais contar, não era isso que estava combinado “mas será que me acertaram mesmo”? ele indagava com os olhos, com aquela cara assombrada, se agarrando na gente para não cair, para a gente segurar não o corpo: a vida dele que estava a perigo, para a gente não deixar ele se acabar, perguntando com os olhos “mas então você também está achando que eles me fizeram mesmo”? como se se você balançasse a cabeça dizendo “não” a morte afrouxava a unha no pescoço dele e como a gente não confirmasse e até ia tocando em frente, ele ficava assim espantado, ainda duvidando, com os olhos já meio navegando muito arregalados às vezes com uma cara assim meio de choro a arma já largada no chão esperando e ele indo se deitar também perto dela, primeiro num joelho, tentando equilibrar na outra perna sem poder porque o outro joelho também já estava dobrando as pernas amolecidas não obedeciam mais à vontade de ficar de pé só um pouquinho mais para confirmar que aquilo era uma coisinha de nada que nem doendo estava, você não percebe? que aquilo era só um machucadinho de leve que passava logo mas as pernas ele não governava mais e aquilo não tinha remédio mesmo o cara ia se deitando no chão desapontado às vezes meio chorando de tão triste ainda olhando como se aquilo estivesse dependendo da gente e a gente dando uma grande mancada, se a gente quisesse… os olhos esfumaçando um grão de ferro na matriz da vida atrapalhando tudo fazendo o sangue correr por onde não devia, encharcando o pulmão, brotando do nariz, brotando na entrada da bala, vermelho no lugar do furo e meio marrom em volta de misturar com a cor da farda, gotejando no chão e fumegando no frio. E o cheiro docinho. O cheiro docinho.
Quão única e tristemente sublime é esta passagem, não somente na chamada literatura de guerra, mas na literatura em geral?
OBRA-PRIMA IGNORADA
Finalmente, vale resgatar a certeira observação sobre MINA R feita em 1995, quando do lançamento da segunda edição da obra, pelo autor e tradutor Boris Schnaiderman, outro expedicionário que teve a felicidade de regressar e registrar sua experiência na Itália: “…um livro cuja ausência em nossas livrarias, esses anos todos, era uma prova pungente de nossa miséria cultural.”
Todo o mérito, portanto, à Editora Ouro Sobre Azul, por resgatar e disponibilizar aos brasileiros, mais uma vez, esta obra fundamental. A quem interessar, ainda há exemplares novos à venda na Internet.
A lamentar, por ora, somente o fato de que MINA R ainda não tenha sido publicado em outras línguas, nem mesmo a inglesa.
Tudo muito simples: uma playlist musical do JUMPING OVER WALLS no SPOTIFY, a ser atualizada aperiodicamente — porém sempre que for possível — com novas músicas.
A ideia é reunir e difundir algumas músicas que apreciamos e que gostaríamos que outros também curtissem.
Para escutar a PULANDO O MURO, você deverá acessá-la no SPOTIFY. Para isso, basta clicar aqui ou no link após os próximos três asteriscos, logo mais abaixo. Também abaixo consta a lista com as referências — título, artista, formato original, ano e selo de lançamento — de todas as músicas que fazem parte da playlist.
Novas inclusões serão divulgadas de três maneiras:
1. pela própria inclusão na playlist no SPOTIFY: basta seguir a PULANDO O MURO por lá e ficar ligado nas atualizações;
2. mediante atualização desta observação aqui no nosso site: as novas músicas serão adicionadas ao final da lista;
1. “Monkey Man” – The Rolling Stones Do álbum Let It Bleed, lançado em 1969 via Decca.
2. “Went to See the Gypsy” – Bob Dylan Do álbum New Morning, lançado em 1970 via Columbia.
3. “I’m Only Sleeping” – The Beatles Do álbum Revolver, lançado em 1966 via Parlophone.
4. “Black Country Rock” – David Bowie Do álbum The Man Who Sold the World, lançado em 1970 via Mercury.
5. “Don’t Let It Bring You Down” – Neil Young Do álbum After the Gold Rush, lançado em 1970 via Reprise.
6. “This Time Tomorrow” – The Kinks Do álbum Lola Versus Powerman and The Moneygoround, Part One, lançado em 1970 via Pye.
7. “Black Napkins” – Frank Zappa Do álbum Zoot Allures, lançado em 1976 via Warner Bros.
8. “Summer ’68” – Pink Floyd Do álbum Atom Heart Mother, lançado em 1970 via Harvest.
9. “Bold as Love” – The Jimi Hendrix Experience Do álbum Axis: Bold as Love, lançado em 1967 via Track Record.
10. “Lady, Lady” – Mutantes Do álbum Jardim Elétrico, lançado em 1971 via Polydor.
11. “Thank You” – Led Zeppelin Do álbum Led Zeppelin II, lançado em 1969 via Atlantic.
12. “Queen of the Highway” – The Doors Do álbum Morrison Hotel, lançado em 1970 via Elektra.
13. “Time to Get It Together” – Marvin Gaye Do álbum Here, My Dear, lançado em 1978 via Tamla.
14. “Las Habladurías del Mundo” – Pescado Rabioso Do álbum Artaud, lançado em 1973 via Talent.
15. “The Seeker” – The Who Do single de 7″ The Seeker, lançado em 1970 via Track Record.
16. “I Need Somebody” – Iggy and The Stooges Do álbum Raw Power, lançado em 1973 via Columbia.
17. “(White Man) In Hammersmith Palais” – The Clash Do single de 7″ (White Man) In Hammersmith Palais, lançado em 1978 via CBS.
18. “If I Can Dream” – Elvis Presley Do single de 7″ If I Can Dream, lançado em 1968 via RCA Victor.
19. “Pyjamarama” – Roxy Music Do single de 7″ Pyjamarama, lançado em 1973 via Island.
20. “Delírio…” – Secos & Molhados Do álbum Secos & Molhados, lançado em 1974 via Continental.
21. “Rock & Roll” – The Velvet Underground Do álbum Loaded, lançado em 1970 via Cotillion.
22. “You’re My Best Friend” – Queen Do álbum A Night at the Opera, lançado em 1975 via EMI.
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Caso você verifique que alguma música da playlist não está mais disponível no SPOTIFY, pedimos a gentileza de nos informar a fim de que possamos tentar solucionar o problema.
GIRL JUMPING OVER A WALL, CENTRAL PARK, MANHATTAN, NEW YORK, USA, 1967
uma fotografia de Mary Ellen Mark
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Esta é uma reprodução de GIRL JUMPING OVER A WALL, CENTRAL PARK, MANHATTAN, NEW YORK, USA, 1967, da fotógrafa americana Mary Ellen Mark.
A extraordinária fotografia acima foi encontrada ao buscarmos na Internet, sem compromisso ou muita atenção, por imagens de pessoas pulando muros, a fim de escolhermos uma que pudesse servir de tema para o JUMPING OVER WALLS.
A busca obviamente terminou assim que batemos o olho nesse verdadeiro achado; mas duvidamos que houvéssemos encontrado algo mais adequado caso ela tivesse continuado. Embora seja evidente que as crianças estejam apenas brincando nas cercanias do muro de pedra, e que o muro não seja nenhuma muralha com metros e metros de altura, de certo modo a imagem captura à perfeição, por efeito do chão minuciosamente ausente do enquadramento, o etos do JUMPING OVER WALLS, isto é, a vontade de mergulhar um pouco mais fundo no desconhecido: no caso, em nossa herança cultural.
O melhor de tudo, porém, foi ter descoberto o trabalho de Ms. Mark, com o qual desde então passamos a nos familiarizar mais e mais.
Infelizmente ainda não conseguimos descobrir nem onde nem quando a foto foi publicada pela primeira vez, mas ela aparece tanto em American Odissey (Aperture, New York, 1999) quanto em Exposure (Phaidon Press, London, 2006), ambos os volumes dedicados ao imponente (em volume e em qualidade) trabalho de Mary Ellen Mark.